sábado, 8 de maio de 2010

Dona Maria

Dia 29 de Março minha vó faleceu.
"Infecção generalizada", disseram os branquinhos.

Dona Maria passou por muita coisa em sua passagem por aqui - que durou cerca de 91 anos. Muita coisa eu, obviamente, não presenciei. Mas, em seus últimos seis anos de vida, estive presente. Éramos colegas de quarto. E de rockadas. Vovó adorava ouvir as pessoas gritando na telinha. Principalmente as mulheres.

Depois de um tempo percebi que sua admiração por gritos femininos tratava-se de um desejo latente em fazer o mesmo. "Sofrer em silêncio" era quase que um lema. Em sua antiga casa, Dona Maria não tinha voz: seu dinheiro e destino eram estuprados por alguns membros de sua família. Quadro comum em muitos lares brasileiros.

Ao se mudar pra nossa casa, vovó começou a participar de nossas discussões cotidianas de café de manhã, regadas a café e muita psicanálise. Participava agora da possibilidade de decidir a que horas e o que prefere almoçar. Com o passar do tempo (e a quitação de inúmeras dívidas acumuladas em anos de corrupção), tudo que era de direito foi-lhe devolvido com prazer e com afeto. Vovó tava feliz.

Começava assim um novo episódio de sua vida. E nessa peça ela era - certamente pela primeira vez em muitos anos - a protagonista.

Dona Maria agora gritava, sorria e comia. Sua condição de ser-pulsante e ser-desejante fora respeitada, florescendo assim um ser-feliz. Vovó já escolhia o que comer, o que vestir, o que comprar, quem ajudar. Fantasiava sobre sexo. Não que me surpreenda o "retorno" de sua libido. Minha surpresa residia em sua voz. Falar não era mais problema.

E viveu assim por seis anos: feliz.

Esse convívio fez de mim alguém melhor. Alguém crente. Crente na possibilidade de mudar vidas. Alguém paciente. Capaz de esperar alguns segundos a mais para ter uma conversa corriqueira. Alguém humano. Preocupado com o bem-estar dos que são "tratados" como objetos inanimados por sua condição existencial - no caso de Dona Maria, a idade.

O momento que mais simboliza o destrato que presenciei com a minha vó foi uma ida ao Hospital de Clínicas Gaspar Viana, no setor de emergência cardíaca. Além do desespero corriqueiro que enfrentamos em situações de risco grave à saúde, enfrentamos juntos inúmeras posturas sado-masoquistas por parte da equipe que ali se encontrava: a maneira como se protegiam em seus jalecos inúteis, a espera a que fomos submetidos, a ironia que demonstravam para com a gente. Entre outras...

Indignado e visando usar o ROCK como arma de protesto e ansiolítico pessoal, musiquei essa experiência. Em breve eu gravo e disponibilizo, mas deixo aqui o produto de minha angústia, de nossa angústia.

"Escudo protetor,
Diferença distancia.
Ignorância justifica,
Irônia denuncia.

Sistema indiferente,
Espera cansativa.
Atenção reciclável,
Humanismo utopia.

Silêncio autoriza,
Saúde filantropia.
Público orfanato,
Criança esquizofrênia.

Sonho assasinado,
Luto melancolia.
Prazer canalizado,
Megalo-mania.

Lutem!

Luta necessária,
Direito garantia.
Futuro esperado,
União fortalecida."

Nada mais tenho a declarar.

Descanse em paz, Dona Maria.
Sua vida não foi em vão, e espero que nossos perrengues também não sejam.