quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Gente;


Gente passando, correndo. Gente agitada, inquieta e atrasada. Fones de ouvido, celular e algodão doce. Churrasquinho de gato, farinha d'água, limão e pimenta. Muita gente que nem a gente.

Cachorro pirento deitado no sol quente, roçando a pele no chão pra lá e pra cá. Cara de alívio que cativa a gente. 

Cheiro de mijo e cachaça. Marcas de sangue duras nas paredes. Gente passando e ignorando a gente. Gente que nem olha pra gente. Gente que olha e puxa a bolsa pra frente. Aperta o passo e corre rasteiro! 

Gente que tosse, espirra e que caga que nem a gente! Gente que ama, que goza e que ri talvez até um pouco menos que a gente. Gente que sofre, que chora e que sente. Sente?

Gente que bate na gente. Essa gente fardada, roupa esverdeada, com arma até o dente. Carregam a marca do Estado que era pra ser da gente! Pontapé, soco e cassetete no corpo da gente. Arranca sangue e segue em frente.

Gente que vê isso tudo que acontece com a gente e não faz nada. Chega em casa cansado, com o quarto arrumado e dorme contente. Gente doente. Gente que deixa o silêncio marcar o corpo da gente. Gente indiferente.

Gente que mente;

Gente que mata a gente;

Gente menos gente que a gente!

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Domingo;

Eram 08h23 da manhã.

Meus olhos despertaram tímidos, fotofóbicos. O estalar de meus ossos, o grunhido de meu acordar e o movimento de meu corpo foram as primeiras impressões do dia. A segunda fora a cotidiana ereção matinal: ele sempre acordava primeiro. Em seguida, percebi uma pressão enorme na bexiga. Ela gritava por vazão.

Continuei deitado.

A próxima sensação fora um misto de dor e alegria: sentia meu braço direito adormecido e dolorido. Pudera. Ela, como de costume, adormecera em meu colo. Pude sentir o peso de seu sono em meu corpo. Como dormia! Seus olhos semiabertos denunciavam o fervor com que repousava. A saliva escorrendo pelo canto da boca também.

Iniciou-se, assim, um terrível dilema.

Hoje é domingo. O que fazer?

Pensei em acender aquela ganja reservada para um dia especial. Ficar chapado de manhã cedo, começando o dia com o pé direito. Adormecer em pensamentos. Cinestesiar emoções, cores, odores, memórias. Deixar que a fumaça desperte meus sentidos. Ficar chapado e ler Bukowski, Kerouac. Ouvir "Moonlight Sonata" e entregar-me à dor de Beethoven: ouvir o que ele não podia mais...

Continuei deitado.

Pensei em potencializar minhas batalhas cotidianas. Mergulhar em Foucault, Deleuze, Passetti. Buscar por forças, por coragem! Historicizar criticamente este presente doente. Problematizar governabilidades, instigar ações! Provocar o público. Convocar as pessoas e ir para a rua. Fotografar e promover visibilidades. Fazer da arte uma máquina de resistências! Produzir rupturas!

Continuei deitado.

Pensei em cozinhar. Articular um almoço com os velhos amigos safados. Tomar uma breja, jogar conversa fora. Apresentar a casa nova! Lavar arroz, ferver, deixar esfriar, misturar o molho, esperar esfriar, cortar a alga, cobrir com arroz, salpicar gergelim, virar do avesso, rechear, enrolar, apertar, cortar, arrumar e servir. Molhar com shoyu e comer!

Continuei deitado.

Nisto, sinto ela despertando. Procura por minha outra mão. Quando encontra-a, puxa forte meu braço até sua barriga e, franzindo o rosto, diz: "Shhhh!".

Continuei deitado.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Saliva e vontade;

Martha era uma menina doce e meiga. Tinha um sorriso claro e sincero. Um jeito moleca de ser, de andar e de falar. Sua postura encantava e atraía. Filha de empresários-sempre-ocupados, Martha cresceu e criou-se no metro quadrado mais caro de Belém. Gozava de todo o conforto que o dinheiro podia oferecer-lhe.

Seu corpo seduzia em suas formas e odores. Porém, parecia ainda não ter completado o desenvolvimento esperado ao final da puberdade: os seios ainda não brotaram por completo. Fonte de inquietação. Não entendia, afinal, já se encontrava no fim de seus 16 anos de idade. Apesar de todo o exposto, Martha destacava-se por algo ainda não descrito e que dinheiro nenhum no mundo garantiria: chupava um pau como ninguém.

A questão era que o tédio dominava a rotina de Martha. Seus pais, por estarem sempre ausentes, calculavam minuciosamente seu cotidiano. Além do colégio, frequentava aulas de inglês, natação, kumon, ballet e reforço. Não havia tempo para nenhum tipo de contato humano. Crescera com a terrível impressão de que era tida como um produto: instigava investimento, ao invés de atenção, afeto e carinho. Sentia-se cinza, murcha. Carente de vida.

Foi exatamente o ato sexual que transformou sua vida. A primeira vez que sentiu cores ao seu redor e experienciou algo de novo na vida fora com seu primo Jonas. Extasiou-se ao presenciar, acidentalmente, o pau de Jonas crescendo, erguendo e explodindo em vida. A ereção era fonte de inveja: aquele pedaço de carne murcho e feio tornava-se tão forte, tão vivo. Tão inspirador. Tão belo.

Martha queria ser um pênis. Precisava ter para si toda aquela fonte de vida e juventude. Em um ato de desespero, subitamente agarrou seu primo e, ainda sem saber muito bem o que fazer, ingeriu o objeto mágico. Jurava ter ouvido os barulhos das ondas e o cantar dos pássaros. O encontro glande-goela produziu lágrimas. Lágrimas de esperança.

Sábia como sempre fora, Martha logo percebeu que não precisava aprender mais nada para subir na vida e fugir de encrencas. Carregava a fórmula mágica na ponta da língua: uma boa chupeta e pronto. As tormentas cessavam e o céu ardia. Tudo resolvido. Nota baixa em sociologia? Liquidação de Melissa no shopping? Flagrada pelos homens da lei distribuindo chupetas por dinheiro? Moleza. A vida não era dura.

Seus pais notavam, mas não entendiam tamanha mudança. Havia um misto de orgulho e dúvida. Ela estava mais bela, mais segura, mais confiante. Mais compreensiva e madura. Não demorou em tornar-se, também, mais desafiadora e confrontadora: desistiu das aulinhas de inglês, de reforço e do kumon. Viveria em função de seu desejo e em eterna negociação com o desejo de seus pais. Logo seus seios brotaram.

Martha dividia as opiniões por suas colegas de classe. Algumas a criminalizavam enquanto outras a idolatravam. Oito ou oitenta: era puta ou rainha de paus. Distribuía dicas para as colegas quanto ao assunto.

- Pra início de conversa é preciso não ter nojo. Os homens percebem quando você não tá muito afim. Ignore possíveis odores cotidianos, afinal, buceta não é a coisa mais cheirosa do mundo e você não verá seu namorado reclamando em chupá-la. Porém, alguns cuidados devem ser tomados. Lembre-se que dentes sempre serão mais duros que qualquer pica neste mundo. Eles mascaram a sensação de prazer e podem provocar dor.

- E o saco? O que devo fazer? – alguém da multidão sempre perguntava.

- Chupe o pacote inteiro. Mas, cuidado para não chupar com muita força... É importante que vocês lembrem sempre de fazer toda essa chupação acompanhada de elogios constantes. Minta! Fale sobre o tamanho do pau de seu acompanhante, do quanto é gostoso chupá-lo e o quanto seria gratificante chupá-lo o dia inteiro...

- Ohhh! – clamavam.

Martha, agora, era tida como a líder de sua turma. Deixara de ser aquela garota estranha com algumas espinhas indesejáveis. Podia perceber o reflexo de seu brilho nos corredores quando passava. Jorrava alegria por onde passava. Martha era um pau bonito e ereto, sempre.

Em uma dessas muitas caminhadas ao paraíso do outro, Martha apaixonou-se. O pau dele era lindo: tinha uma tonalidade rosada, todas as veias nos lugares e tamanhos certos e o design que completava o estádio de futebol que sua boca se tornara. Nem era assim tão grande e não importava. A grossura, para ela, era o que importava. A grossura e o seu jeito de ser.

Martha e seu namorado viveram felizes para sempre. Afinal, não haviam problemas que não pudessem ser solucionados. Um pouco de vontade e de saliva eram suficientes.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Guerra;

Eu tenho a sorte de um amor tranquilo.

Tenho me sentido estranho. Ouço palavras em lágrimas. Lágrimas de muitos, muitos estranhamente familiares. E faz-se muito estranho tatear suas dores com tanta estranheza. Tanta distância, tanta coisa não-minha.

Vivem de amores não-amados. Feridas abertas, pulsos cerrados. Cansados do gosto amargo da vida, embriagam a garganta em ritmo de chuva. São corpos famintos. Corpos atravessados, penetrados pelo desamor. Corpos cansados de tanto lutar. Mãos estampadas com o sangue despejado na batalha canibal que tornou-se o amor. Amar - não sei dizer bem desde quando - é uma guerra.

E que guerra fria. Repleta de metas, objetivos. Jogos, estratégias, planejamentos e metodologias. Mentes fragmentadas em tiras. Mentiras. Ironicamente, diz-se que vence aquele capaz de disfarçar seus sentimentos. "Não declararás! Não te entregarás!", exclama o sargento enrustido.

É estranho ver como isso apresenta-se a mim com tanta estranheza. Este sangue não correrá em minhas mãos. Entregar-me-ei até não dar mais conta.

E essa guerra hollywoodiana que vá se foder.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Amargura;

O céu era fonte de inveja.

Botara o plano mais suicida em ação: pular. Não olhar para baixo. Não pensar no chão. Não figurar a queda. Vendar os olhos, prender o ar e mergulhar. Restava-lhe aguardar pelo colo dela e seu perfume. O abraço apertado, o conforto do beijo. O calor dos sonhos. Mas, deu merda. Espatifou-se. Espedaçou-se. Enrijeceu-se. E não chorou.

O céu provocava inveja.

Não fazia sentido. Que absurdo! Aonde, afinal, falhara? - questionava-se sádica, masoquista e ironicamente. Deveria ser culpa dele. Lógico. Afinal, amor e ódio, quando no cú da gente, é difícil de aceitar. Ela era intocável. Talvez, em suas fantasias mais íntimas, nem defecar pudesse.

E o céu trovoando inveja.

Estava difícil. A cerveja, amarga, quase desistira dele. A racionalização ocupava a quarta cadeira da mesa do bar. E estava gorda. Gorda e chata! Era quase impossível combatê-la: silenciava o sorriso característico, restringia os olhares e não tolerava lágrimas. Mas, a coragem falou mais alto. Levantou-se, enxergou-se e apoderou-se de si. Eis o ato mais corajoso: desfazer-se em lágrimas.

Era um choro engasgado, recheado de soluços. Tão corajoso que não se preocupou em controlar-se. Parecia não ter fim. A quarta companheira pagou sua parte na conta e retirou-se. E de repente o céu passou despercebido.

E a cerveja deixou de ser amarga.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Calmaria;

A calmaria estranha.

A vida sempre fora uma merda. Cagalizada, conturbada. Insegura, infiel. Picos afetivos: felicidades extremas e desgraças absurdas. Manhãs, tardes e noites perdidas em memórias entorpecidas, embriagadas. Cambaleando pelas ruas de Belém. A única definição era o excesso. Excesso de noites não-dormidas, de amigos insaciáveis. De palavras ditas, de lágrimas engolidas. De corações aquecidos e enrijecidos. Exagero de loucuras. A loucura do exagero.

A calmaria é estranha.

O silêncio perturba-me, sacode-me. Como quando interrompem o barulho da televisão para que possa dormir mais tranquilo. Mas, invariavelmente, acordo. O silêncio desperta. Desperta e amanhece: lança luz sobre os demônios que dormiam na retaguarda da loucura. Quando deparo-me a mim encontro meu maior desafio, meu maior orgulho. Meu maior inimigo.

A calmaria entranha.

Mas o costume - como de costume - acostuma. Eis que descubro o maior desafio da vida: lançar magia e poesia sobre o ínfimo, o insignificante. Valorizar o detalhe, a rotina. O beijo corriqueiro, com línguas ausentes. A coceira do dedo do pé. O aroma de uma boca recém-acordada. O calor da pele no espaço-universo que transita entre os seios. Os erros de fábrica. A paixão é loucura. O amor é rotina. A calmaria é desafio.

E agora, com a televisão desligada, posso voltar a sonhar.