Arrepios:
política e drogas no brasil
(com "b" minúsculo, pra sentir
logo o cheiro da merda)
por Artur Couto
Tenho estado inquieto. Fico assustado com
a maneira pela qual a política de drogas no brasil têm caminhado. Sei que é um
tema complexo e que a contestação da morte política não se restringe à política
sobre drogas, mas esses arrepios digitados darão maior enfoque à gestão do
famigerado "problema das drogas".
Calafrios: problema das
"drogas"? Sinto aqui uma estratégia que funciona sutilmente em
batizados de políticas municipais, estaduais e federais. Devemos lembrar que
não se faz política para a droga. Faz-se política para pessoas. Pessoas que se
relacionam, por uso ou comércio, com drogas. Parece infantil, mas é preciso
desnaturalizar. Quando ouvimos dizer "plano de enfrentamento ao
crack", estamos ouvindo propostas que têm suas ações focadas em enfrentar,
combater, eliminar o usuário do crack. Notemos que os termos utilizados já
denunciam uma militarização na política. Militarização no sentido de sentir o
cheiro do clamor punitivo das pessoas e da perpetuação da política do castigo
na nossa sociedade.
Focar na droga em si também me inquieta
por um reducionismo do problema. Talvez o fracasso da política de drogas seja o
carimbo sujo da falência de todas as políticas deste país: saúde, educação,
segurança pública, assistência, etc. Quando falamos de "pacto municipal de
combate às drogas”[1]
sabemos que nada será feito por outras ações de outros eixos também envolvidos
na questão. A sentença é cotidiana.
Pensar também no uso de drogas como o
maior problema da vida de uma pessoa é arrepiante. A racionalidade da saúde,
por exemplo, ainda não conseguiu descentralizar sua ação da droga. As pessoas
que usam drogas são pessoas! É fundamental entender que o seu José - que toma
uma cachacinha todo dia e que dispara nojo nas equipes de saúde - é mais do que
a cachacinha que ele toma! Existem outras coisas que o incomodam. Instigar
politicamente as pessoas é saúde, porra. É tecer roupa para a vida nua de Agamben.
Michel Foucault sempre atentava para isso: política é jogo de forças cotidianas,
redes que funcionam capilarmente e que não estão somente acopladas ao estado. O
poder é capilar, seu exercício é relacional. Falemos de outras coisas também
com o seu José. Ele provavelmente vai ter muito a dizer.
Outro arrepio é a escalada catastrófica do
proibicionismo. Lembremos que a política criminal de modo geral é uma escolha
política, histórica. A proibição serve aos seus fins: produção de criminosos. Para
Foucault[2], essa estratégia
isola um pequeno grupo de pessoas que podem ser controladas,
vigiadas, conhecidas de ponta a ponta e que são alvo de hostilidade e de
desconfiança dos meios populares dos quais saíram, pois as vítimas da
insignificante delinquência cotidiana ainda são as pessoas mais pobres. (p.
34).
Com a escalada da ação penal, temos
observado a contínua produção do sujeito-usuário ou sujeito-traficante como os
titulares da miserabilidade das vidas das pessoas. O sujeito-droga tem costa
larga. Foucault nos aponta o resultado esperado dessas ações:
Um lucro econômico: as somas fabulosas trazidas pela prostituição,
pelo tráfico de drogas, etc. Um lucro político: quanto mais houver
delinquentes, mais a população aceitará os controles policiais, sem contar o
benefício de uma mão de obra garantida. (p. 34).
A figura do traficante, aquele cara negro,
favelado, com um três oitão na cintura e fumando maconha, funciona para
alimentar o medo das pessoas e legitimar verdadeiras ações de extermínio por
parte do estado. Um tempo desses vimos a polícia do Rio de Janeiro “retomar” o
espaço do morro do Alemão, tudo ao vivo e em cores. Durante todo o processo de
ocupação moradores da região relataram seus arrepios: mortes, torturas, roubos,
tráfico de drogas e outras variações de castigos. Mas quem falava na TV era o
policial-herói, que expulsou, varreu, matou o câncer do brasil. Os capitães nascimentos
da vida.
A figura do traficante é um ótimo exemplo
de como o racismo de estado e de sociedade operam. Produz-se um corte entre um
corpo populacional, separando, distanciando, em nome da vida, as pessoas que
devem ou não devem morrer. As pessoas boas das pessoas más. As pessoas produzidas
enquanto aquelas que ameaçam a sobrevivência da própria população. Legitimam os
cortes um jogo de forças onde a ciência tem um papel fundamental. É preciso
gozar dos efeitos de saber-poder que a instituição ciência dispara: a produção
da verdade.
Inicialmente faz-se um estudo.
Epidemiológico e fechado, de preferência, pra não ter que ouvir outras coisas
que não interessam. Respostas simples, com no máximo cinco quadradinhos para
preencher. Pensa-se em variáveis aleatórias para relacionar o uso de drogas com
a ocorrência de crimes, com a transmissão de doenças infecto-contagiosas, com a
prostituição, com o desajuste familiar, com a evasão escolar, e outras coisas.
Toma-se por isso uma relação de causa e efeito, por “a” mais “b”, onde se torna
possível dizer: “Tá vendo? O uso de drogas é uma mazela social. Malditos nóias
que impedem o desenvolvimento do meu país e que podem corromper meus filhos
para o mundo das drogas! Cadê o estado? Têm que internar essa galera toda. É
simples: interna quem é doente e prende quem é traficante!”.
Com o diagnóstico do mal em mãos, os especialistas começam a propor políticas específicas para cada situação, fragmentando ainda mais a problemática. O usuário de drogas (em especial o “dependente químico”, mas não somente ele) vai ser entendido como o sujeito-doente, incapaz de controlar suas próprias ações e dar limites para o próprio desejo. Detalhe: um sujeito eternamente doente, haja visto o consenso psiquiátrico-psicológico de que a dependência não tem cura. O aprisionamento também se passa pelo diagnóstico: o doente deve se sujeitar a estar sempre sob controle médico, atento para as suas próprias condutas, suas próprias ações, vinte e quatro horas por dia e um passo por vez. Deve ser vigilante de si, para não escapar ao que é normal. Isso se o caso for simples. Se for um dependente da pesada, indisciplinado, que não toma medicação (um crime!), que deteste terapia de grupo e fazer árvore de natal com garrafa pet, será necessário interná-lo por qualquer meio possível, para o seu próprio bem e enfiar a nova camisa de força goela ou agulha abaixo. Toda resistência será “negação” do problema, uma incapacidade de enxergar a si mesmo, ao dano que está fazendo com o próprio corpo. Esse cara é o problema. O dócil é confortável. O cara medicalizado, que fala da sua trágica história de vida, que assume sua “compulsão”, sua inabilidade em lidar com a situação sozinho, que precisa da medicação, que levanta a bandeira do “diga não às drogas!”, que dá palestra em escola, em universidade, em hospital, alertando sobre o caminho obscuro da droga, cheio de escolhas erradas, é esse o cara que enche os olhos dos especialistas. Missão cumprida!
Para o sujeito-traficante resta a prisão. Essa
velha máquina de moer carne humana, que funciona como remédio para si mesmo.
Acácio Augusto, pesquisador do nu-sol (núcleo de sociabilidade libertária),
atesta: todo preso é um preso político. É a produção última de toda uma racionalidade
de gestão da população onde os infames devem ser internados em defesa da
sociedade. Onde as personalidades antissociais (produção especialista) devem,
em função de representarem um risco em potencial, estar encarceradas. Não punir
mais pelo ato cometido, como descaminha Foucault, mas em função das
virtualidades dos comportamentos, das paixões. Punir pelo passado e pelo
futuro. Mais presídios de segurança máxima, mais leis, penas mais longas e mais
duras, perpetuação do castigo dentro e fora da prisão, à céu aberto. Mas,
claro, não prender todo mundo. Um helicóptero com quase meia tonelada de pó de
cocaína não arrepia ninguém.
Impunidade ou seletividade penal?
Mas acho que o meu arrepio maior é o
silêncio.
Esse aí é foda.
[1]
Uma manga
dessas está caindo nas cabeças das pessoas que transitam por Belém. Entre
outras coisas, o plano emergencial de combate ao usuário do crack vai
possibilitar o financiamento de 100 leitos em Comunidades Terapêuticas. Outro
reflexo de uma sociedade punitiva e higienista. A rede substitutiva não existe,
mas isso não arrepia a gestão.
[2] Michel Foucault, 1975, Do
suplício às celas. Ditos & Escritos, volume VIII.
[3] As fotos não são de minha autoria. Desconheço os autores. Se souber, por favor, entre em contato por comentário.
[3] As fotos não são de minha autoria. Desconheço os autores. Se souber, por favor, entre em contato por comentário.
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