Não lembro quando comecei a fugir. Acho que tem um tempo. O barco de mentiras segue para a terra do nunca, sem rumo, sem previsões, sem destino e sem esperança. Eu embarco disfarçado de visitante e espectador. Navego.
Tempestades sinalizam a desordem dos últimos dias. Cego, finjo indiferença. Sigo, rumando ao caos. Sigo, bebendo água salgada que enjôa e urina. Sigo, cego e sujo sem olhar pra trás. Sem parar.
O desastre é inevitável. Afogar-me-ei até quando?
O barco perdeu o rumo ao deparar-se com a falta. Âncoras não existem mais aqui. Pegaram outro barco, menos suicida. Decisão sábia. As velas mudaram de direção. Os ventos rasgam a pele marcada de sol e desnutrição. Os pássaros que cagavam em nossas cabeças não existem mais. Sigo, cego e surdo. Finjo não escutar os gritos da tripulação - que ainda resistem à bordo - clamando, insistindo que neste barco eu estou no comando. As decisões são minhas. A responsabilidade, também.
O barco segue seguindo, lembrando.
Meu porto original era belo. Tinha rainha, cavaleiros e meu castelo. As vezes navegava, mas a maré era mais tranqüila, admito. Acho que sinto que, quando sinto, sinto falta do que era eu, do que era meu. Do que era puro.
Ondas e ondas me atingem. E no frio, só a solidão. E só.
A voz nauseante do silêncio. O brilho nos olhos que a saudade traz.
- O que fazer? - Alguém quebra o silêncio.
- Vá tomar no seu cú. Continue remando. - Insisto.
- Vamos afundar? - Insiste o inconveniente.
- Há muito que afundamos, não percebes? - finalizo.
Um comentário:
"insistindo que neste barco eu estou no comando. As decisões são minhas. A responsabilidade, também."
Difícil,
Principalmente quando se sente falta de âncoras, consciência dos gritos e de que já, há muito, afundou.
Adorei o texto.
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