A calmaria estranha.
A vida sempre fora uma merda. Cagalizada, conturbada. Insegura, infiel. Picos afetivos: felicidades extremas e desgraças absurdas. Manhãs, tardes e noites perdidas em memórias entorpecidas, embriagadas. Cambaleando pelas ruas de Belém. A única definição era o excesso. Excesso de noites não-dormidas, de amigos insaciáveis. De palavras ditas, de lágrimas engolidas. De corações aquecidos e enrijecidos. Exagero de loucuras. A loucura do exagero.
A calmaria é estranha.
O silêncio perturba-me, sacode-me. Como quando interrompem o barulho da televisão para que possa dormir mais tranquilo. Mas, invariavelmente, acordo. O silêncio desperta. Desperta e amanhece: lança luz sobre os demônios que dormiam na retaguarda da loucura. Quando deparo-me a mim encontro meu maior desafio, meu maior orgulho. Meu maior inimigo.
A calmaria entranha.
Mas o costume - como de costume - acostuma. Eis que descubro o maior desafio da vida: lançar magia e poesia sobre o ínfimo, o insignificante. Valorizar o detalhe, a rotina. O beijo corriqueiro, com línguas ausentes. A coceira do dedo do pé. O aroma de uma boca recém-acordada. O calor da pele no espaço-universo que transita entre os seios. Os erros de fábrica. A paixão é loucura. O amor é rotina. A calmaria é desafio.
E agora, com a televisão desligada, posso voltar a sonhar.
Um comentário:
Gostei.
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